Bia Doria, mulher do governador de São Paulo João Doria (PSDB), declarou em entrevista à socialite Val Marchiori que não se deve doar marmitas para moradores de rua porque “as pessoas gostam de ficar na rua” e elas “têm que se conscientizar e sair dessa situação”.
Gravado no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual, o vídeo da entrevista foi publicado em uma rede social na noite de quinta-feira (2), e se tornou um dos assuntos mais comentados do Twitter nesta sexta-feira (3). Inúmeras instituições divulgaram notas de repúdio sobre a fala da primeira-dama.
“Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim: as pessoas que estão na rua, não é correto você chegar lá na rua e dar marmita e dar porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”, afirma Bia Doria.
Uma pesquisa da Prefeitura de janeiro deste ano revelou que a população de rua cresceu 53% nos últimos quatro anos, chegando a 24 mil pessoas. Bia cita esse número, que diz ser “muito grande”. Ela é presidente do Conselho do Fundo Social de São Paulo e está à frente do Fundo Social de Solidariedade com projetos como Alimento Solidário e Inverno Solidário.
Segundo a Prefeitura, a pandemia de coronavírus já matou 28 sem-teto na capital paulista. Conforme o G1 mostrou, um projeto da Prefeitura para oferecer vagas em hotéis a sem-teto idosos não saiu do papel. As propostas recebidas não atendiam aos requisitos de editais. A terceira convocação pública sequer teve donos de hoteis interessados.
No vídeo, Val e Bia falam que moradores de rua resistem a procurar abrigos porque “não querem ter responsabilidades.”
“Você estava me explicando e eu fiquei passada. Eles não querem sair da rua porque em um abrigo eles têm horário para entrar, eles têm responsabilidades, limpeza, e eles não querem né”, diz Val.
“Não querem”, responde Bia. “A pessoa quer, ela quer receber, ela quer a comida, ela quer roupa, ela quer uma ajuda e não quer ter responsabilidade. Então isso tá muito errado, porque se a gente quer viver num país…”
“É, todo mundo tem suas responsabilidades, todo mundo”, interrompe Val. “Nós temos, se a gente não pagar nossas contas…”, completa Bia.
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Durante a conversa, Val reclama de ter de usar máscara e conta que “graças a Deus” já teve Covid-19. Bia diz que, então, ela pode tirar a máscara e só voltar a usar ao sair do local.
“E a Bia Doria está fazendo um trabalho maravilhoso, de consciência mesmo, as pessoas que vivem na rua tentar levar para os abrigos, eu tenho acompanhado aí e esse é o trabalho da primeira-dama, gente, não é só fazer foto não, hello, tem que primeira dama só fica com o cabelinho arrumado? Não, não, a Bia ó, a Bia é mão na massa aqui, a loca. Ai gente, eu detesto falar de máscara, mas enfim”, diz Val.
Em nota, a Secretaria Especial de Comunicação do governo estadual esclarece que a fala de Bia “foi tirada do contexto” e diz que a intenção dela “é que as pessoas em situação de rua tenham acesso aos abrigos públicos, onde terão alimentação de qualidade dentro das normas de higiene da Vigilância Sanitária, e uma condição de vida mais digna. Ou mesmo nos Restaurantes Bom Prato, que recentemente decretaram gratuidade aos moradores de rua.”
Repúdio
Inúmeras instituições divulgaram notas de repúdio contra a fala de Bia Doria.
A pastoral de rua de São Paulo, representada pelo Padre Júlio Lancellotti, da Arquidiocese de São Paulo, disse que “vê com indignação e perplexidade o vídeo em que a senhora primeira-dama do estado e presidente do Conselho do Fundo Social de São Paulo declara que a população de rua ‘gosta’ de estar na rua e que se acomoda por receber alimentos e roupas.”
“Opiniões desta natureza reforçam a violência, discriminação e preconceito que diariamente fere e humilha os que são relegados ao abandono e omissão do Estado. Tais declarações ferem a dignidade humana e são mais uma agressão aos que nas ruas não tem como se defender”, diz a nota.
Levi Araujo, pastor batista da Comunidade Caverna, disse que o vídeo é “repugnante” e “revela a feiura de alma e a ignorância vergonhosa da maioria abastada classe social brasileira.”
“Esses meritocratas realmente acreditam nessa lógica tosca e inculta. Nada sabem sobre as pessoas em situação de rua, as condições que as levaram a esse estado e, principalmente, como a compreensão dessa realidade é complexa e mais profunda.”
“Ultimamente, todo dia é dia de ficar indignado, hoje essas madames, representantes da maioria de sua classe, ofenderam os meus irmãos e irmãs de rua, desrespeitaram os profissionais e amigos que entregam a vida diariamente para servir essas pessoas e, principalmente, a Jesus de Nazaré, a quem sigo e sirvo. Quando estou respeitando a dignidade dessas pessoas, buscando políticas públicas abalizadas pela ciência, enfim, quando eu as sirvo com amor eu estou servindo ao próprio Jesus Cristo.”
Ariel de Castro Alves, advogado e conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe), disse em nota que a decisão de entregar ou não comida, roupas e dinheiro para as pessoas que estão nas ruas pedindo é individual e pessoal e que não cabe ao estado interferir.
“O estado (governos) precisa oferecer vários serviços públicos, de saúde mental, moradia, geração de renda, qualificação para o mercado de trabalho, educação, assistência social, inclusive albergues e serviços de acolhimento que recebam as pessoas com seus animais (cães e gatos) e bens pessoais, que incluem os carrinhos dos catadores de materiais recicláveis. Essas ações evitariam que tantas pessoas estivessem nas ruas.”
“Agora com a pandemia e aumento do desemprego e da falta de renda o número de pessoas nas ruas tem aumentado e o estado não tem tomado as ações necessárias, como convênios com hotéis de baixo custo para manter as pessoas hospedadas. Se não fossem as ONGs, igrejas e iniciativas individuais, com o fechamento dos comércios na quarentena, as pessoas em situação de rua estariam passando fome.”